O paradoxo do divergente


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São poucas as ocasiões em que o dia de natal se dá ao luxo de repousar em uma sexta-feira. Praticamente uma saturnália, para alegria daqueles que podem se dar ao luxo de estar entre os seus, por tantos dias. Diria até, tempos oportunos, para os que buscam por trabalho ou aguardam os tempos de festas para “tentar” fechar este problemático ano com as contas no azul.

Aproveitando a ressaca das longas festas natalinas deste ano, aproveito para adentrar um campo espinhoso, tal qual a coroa de Cristo: O paradoxo do divergente. Na esteira de um estudo publicado pelo Facebook, na qual as pessoas são analisadas pelos algoritmos e teriam acesso só, e apenas (quase que exclusivamente), ao conteúdo ideologicamente alinhado às suas crenças e opiniões. Quais são as implicações que uma “filtragem proposital” de informações podem acalentar ao nosso dia a dia? Em termos chulos, brincar na terra seria mais prejudicial do que em um ambiente estéril?

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Exemplo de redes sociais (liberal, moderada e conservadora) segundo o  Facebook. Pontos são indivíduos e linhas seus relacionamentos

O paradoxo está justamente na esterilização do nosso ambiente do choque de ideias. A divergência é fator imprescindível como promotora do desenvolvimento humano, é a concorrência do livre mercado das ideias, o fator condicionante para a ocorrência do progresso, em qualquer área do conhecimento.

Talvez pela sorte de ter tido uma infância sem filtros, em uma época de crianças soltas na rua, com muito mais lama do que internet. E pelo azar de flutuar entre uma excelente condição financeira e o drama de um corte de luz e até de fome, pude crescer tendo quase uma miríade de contrastes sociológicos à minha disposição.

A paixão pelos mapas foi a cereja do bolo. De uma família cujas origens invocam o trabalho duro e a livre iniciativa – um avô materno que revendia fardos de algodão em seu barco maria-fumaça subindo e descendo o rio Paraná e um avô paterno que teve peito de vender, por duas vezes, seu principal patrimônio, para abrir seu próprio negócio – vi-me, de uma hora para a outra, em um dos ambientes mais estéreis e menos propício ao diálogo que existe no Brasil: a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Parafraseando Lucas Vilela Jr, quando consideramos a colocação de pensamentos diferentes uma ofensa, ideias edificantes são escondidas e pensamentos errôneos se perpetuam. E complementa afirmando que a colocação de pensamentos diferentes nunca será uma ofensa, mas sim uma tentativa recíproca de elevação e esclarecimento, o que revela o caráter (do debate) de promover o melhor (para si e para o outro). Foi neste ínterim o meu pensamento em outubro de 2008, quando questionei o posicionamento de alguns professores da Geografia contra a instalação de empresas júnior na FFLCH.

O paradoxo dá-se exatamente quando as pessoas admiram os idealistas ao mesmo tempo que estigmatizam a divergência ideológica. Textos publicados neste blog ou no Facebook do 30 Diários devem ser lidos exatamente como são propostos: ideias. E indeferir uma ideia pela sua origem é negar o debate, é proibir o contrário, é impossibilitar o esclarecimento de equívocos próprios, é destituir da razão qualquer unanimidade.

É neste contexto, de crescimento pessoal, da fuga desse ambiente estéril (proposital ou não) onde estamos literalmente afogados nas redes sociais, é que eu voz brindo com dois belos textos. O primeiro – de Sanford Ikeda,  professor de Economia na Purchase College da Universidade Estadual de Nova York – sobre rótulos ideológicos e como o ambiente estéril das redes sociais retarda nosso desenvolvimento intelectual. O segundo de Tatiana de Mello Dias, editora de blog do Brasil Post e do SP Honesta.

Um conservador contra casamentos homoafetivos e uma progressista (esquerdista). Ambos condenam a falta de diálogo, que leva à interpretação errônea e simplista e resulta na exacerbação dos ânimos. O desconhecimento de nossas limitações reais está intrinsecamente ligado ao fato de não saber o que o outro pensa. Embora divergentes, a linha de pensamento dos dois autores se encontra, se completa e permeia o diálogo entre visões antagônicas, através de um denominador comum.

Esta “permeabilidade” é importante para construirmos a ponte do diálogo construtivo por sobre o abismo da ignorância. Estabelecer denominadores comuns entre pontos de vista divergentes é fundamental na hora de fomentar políticas públicas conjuntas pró Brasil. Disseminar a intolerância e a aspereza, ainda que dentro de uma bolha social acrítica, não condiz com a  liberdade individual e suas responsabilidades.

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Rótulos e bolhas ideológicas

Por Sandford Ikeda,

Seja cuidadoso na hora de rotular as pessoas com quem você discorda

Quando me envolvo em uma discussão ideológica, eu tento ter cuidado em como a pessoa com quem eu estou discutindo vai me rotular e como eu vou rotulá-la ideologicamente. Eu não estou falando de palavras desdenhosas ou pejorativas (por exemplo, mau, estúpida, ignorante), mas termos próprios de uma discussão formal. Como habitualmente rotulamos nossos oponentes no diálogo ideológico poderia revelar algo desagradável sobre o mundo no qual vivemos.

Rotular da maneira correta

Agora, algumas pessoas argumentam que “ideias importam, rótulos não”. Quando falamos sobre uma questão específica – por exemplo, a intervenção militar no Oriente Médio – então, sim, chamá-la de “esquerdista”, “libertária”, progressista”, “socialista”, ou qualquer coisa não contribui em nada para o debate. Contudo, quando se refere a uma visão de mundo de uma pessoa ou grupo particular ou um grupo de pessoas que pensam da mesma forma, especialmente no contexto do debate público, então como nos rotulamos e rotulamos a outrem pode ser de suma importância. Se o objetivo é promover um diálogo construtivo, então é importante rotular da forma correta.

Nesses casos, nós preferimos ser chamados pelo rótulo com o qual nos identificamos. Eu não gosto de ser chamado de conservador ou progressista porque esses rótulos representam um conjunto de ideias e políticas das quais muitas eu não defendo. Eu prefiro ser chamado de libertário. (“Liberal-clássico” poderia ser melhor, mas ninguém no mainstream sabe o que é isso).

Colegas de faculdade que conheço há décadas assumem que eu sou um conservador porque me manifestei abertamente contra um sistema de saúde estatal, do que erroneamente inferem que sou contra o casamento de pessoas do mesmo sexo e que defendo o envio de tropas para guerras em outros países. Leitores da revista The Freeman tiveram, estou seguro, que se defender contra a acusação de serem “pró-empresas” devido ao nosso ceticismo com relação à regulamentações e aos altos impostos. Temos que explicar que defender o livre mercado não é uma postura pró-empresas, pró-consumidor ou pró-trabalhadores (embora a posição do livre mercado é, de certa forma, “pró” todas essas e outras coisas mais). Esse tipo de rotulação enganosa, além de irritante, pode ser o resultado de um erro honesto – um que confesso também cometer.

Rotular erroneamente uma pessoa por engano é uma coisa:  “conservador” por “libertário”, “marxista” por “progressista”. Outra coisa é rotular o seu oponente erroneamente de forma deliberada, um truque que a força perder tempo com a falsa acusação. Mas existe um terceiro tipo de falsa rotulagem que reflete um tipo mais extremo de erro, um que surge do isolamento.

Alguém se chama neoliberal ou estatista?

Estou resenhando um livro sobre cidades cujo autor usa muitas vezes a palavra “neoliberal”. É usada principalmente por europeus “da esquerda” – isto é, social democratas, progressistas, socialistas, verdes – para se referir a pessoas ou grupos que defendem algum tipo de posição “libertária”. Explicarei em breve porque estou usando aspas aqui.

Do que pude constatar de meus colegas europeus, contudo, ninguém se identifica como “neoliberal”. “Neoliberal” é aparentemente um termo que algumas pessoas vinculam a posições de “extrema direita”, o qual aparentemente inclui as pessoas que supostamente possuem um agenda anti-sindical e pró-empresas. Óbvio que esse tipo de pessoa realmente existe, mas existe uma razão pela qual ninguém se define como neoliberal. Como Stanley Fish explicou há alguns anos no The New York Times, “Neoliberalismo é uma forma pejorativa de se referir a um conjunto de políticas econômicas baseadas numa grande fé nos efeitos benéficos do livre mercado”. Portanto, “neoliberal” é pejorativo.

E antes que os libertários se revoltem, permitam que eu diga que nós utilizamos palavras como “coletivista” e “estatista” quando descrevemos nossos oponentes, e, pelo que sei, ninguém se auto-identifica com aqueles termos. Na verdade, entre nossos companheiros de causa, pode ser apresentado um significado claro e despertar um espírito de equipe. Contudo, usar repetidamente  a palavra em diversas oportunidades para descrever outrem, quando ninguém usa a palavra para se auto-identificar, é um sinal muito claro de que você vive em uma bolha ideológica.

Evidentemente, enquanto que a autora do livro que estou resenhando diz estar escrevendo para um “público leitor interdisciplinar”, ela dá como certo que seu público será ideologicamente simpático.

Nossas bolhas ideológicas

Uma “bolha ideológica”, na minha interpretação, é uma rede social de compreensão ideologicamente compartilhada que afasta seus membros de outros com visões opostas. Você pode ser um ferrenho anarquista de mercado, por exemplo, mas ainda estar disposto a ter uma conversa séria e civilizada com pessoas com quem você discorda veementemente. De forma simples, você vive em uma bolha ideológica se você só fala sobre ideologias com pessoas que você já concorda previamente.

Uma bolha ideológica nos isola das críticas feitas aos nossos princípios e posições, retardando nosso crescimento intelectual. Isso nos dá uma falsa sensação de segurança e de satisfação, colocando para fora toda nossa intolerância e aspereza – coisas que destroem uma discussão civilizada. Além disso, tenha em mente que são normalmente os espectadores curiosos de um debate que queremos persuadir, e eles levarão em conta nossa linguagem e conduta no momento de julgar nossas ideias.

Uma das coisas que aprendi com o meu grande professor Israel Kirzner é que nós não podemos realisticamente estar cientes de todas as nossas atuais limitações porque nós simplesmente não sabemos tudo o que não sabemos. Nós temos pontos cegos, e isso significa que bolhas intelectuais de todos os tipos são inevitáveis. No entanto, isso não significa que elas devem permanecer invisíveis para nós. Kirzner também nos ensinou que a descoberta criativa é possível. Os sinais estão aí, e manter os olhos abertos a eles nos dará a chance de torna-los, pelo menos, um pouco mais permeáveis.

Fonte: fee.org

Tradução para o português: Matheus Pacini. Revisão de Ivanildo Terceiro.

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Facebook e democracia: o lado de fora da bolha

Por Tatiana de mello Dias,

Eu estava na cozinha da minha casa quando comecei a ouvir o zumzumzum da rua. Não entendi nada. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que devia ser um bloco de Carnaval tardio. Olhei os prédios em volta e vi as pessoas vaiando e fazendo barulho. Liguei a TV e entendi: era o primeiro panelaço. Era a história, ali, acontecendo na minha frente – mas eu não estava sabendo porque aquilo estava fora da minha bolha, criteriosamente moldada segundo filtros, usuários bloqueados e preferências pessoais expostas todos os dias nas redes sociais.

Agora, a tese da bolha, ou ‘filtro-invisível’ (o filter bubble), cunhada há alguns anos, pelo ativista, pesquisador e empreendedor Eli Pariser, foi colocada à prova. Na época, Pariser causou polêmica quando afirmou que, em vez de abrir os horizontes, a internet estava, na verdade, fechando as pessoas em seus próprios círculos. E isso era culpa dos algoritmos que filtram conteúdos, criados por empresas como Google e Facebook, para classificar o conteúdo exibido ao usuário conforme seus próprios interesses.

Um time de pesquisadores do Facebook resolveu investigar o poder da bolha – de que maneira os usuários são privados de receber conteúdo diferente de sua linha de pensamento na timeline. O resultado, publicado na revista Science, está provocando discussões acaloradas e controvérsias. Spoiler: sim, nós estamos presos na bolha. A questão é: nós temos a opção de entrar ou sair dela?

No estudo, os pesquisadores analisaram o comportamento na rede de 10 milhões de usuários do Facebook que assinalaram suas preferências políticas em seus perfis (liberais ou conservadores). O estudo deixou claro que, sim, no Facebook você tem mais tendência a ver conteúdos que são populares entre as pessoas que têm o mesmo ponto de vista que você. E que o algoritmo do Facebook (alimentado por nosso próprio comportamento na rede) amplifica a visão política a qual você pertence. A surpresa foi que o efeito é menor, em termos de porcentagem, do que Pariser preveu. Mas isso não o torna menos importante.

Esta reportagem explica bem o resultado:

O Facebook se encarrega de mostrar aos progressistas 22% de conteúdo que desafia sua ideologia. Já os conservadores enxergam 33% desse tipo de postagem – conservadores têm um pouco mais de interesse pelas ideias dos adversários do que o contrário. Segunda a pesquisa, se a rede social não soubesse a orientação política dos usuários, eles visualizariam respectivamente 24% e 35%, índices muito semelhantes. E chegariam a esses percentuais pelas suas próprias escolhas: suas amizades, suas curtidas, seus comentários. Ou seja, se há uma “bolha ideológica”, somos nós mesmos quem nos colocamos para dentro. O Facebook só facilitaria o enclausuramento nessa gaiola aconchegante dos que concordam conosco.

O Facebook usou esses dados para justificar que a escolha individual importa mais do que os algoritmos. Isso mata a teoria do filtro-bolha? Eu acho que não, pelo contrário: explica muito do que estamos vivendo na rede hoje.

“Nós podemos esperar que quando as pessoas tem a chance de escolher quais notícias ler, elas optem por aquelas com as quais elas tendem a concordar mais”, escreveu Christian Sandvig, professor de comunicação na Universidade de Michigan. Para ele, essas escolhas levam a mais seletividade e polarização – algo potencialmente danoso numa democracia.

O acadêmico criticou a maneira como o Facebook interpretou os resultados, minimizando os riscos da polarização e atribuindo a ‘culpa’ da bolha aos próprios usuários. A pesquisa foi amplamente questionada – por sua amostragem, metodologia e vínculo com o Facebook -, mas eu vou falar aqui da minha experiência empírica como usuária brasileira e interessada em política e internet.

A revolução será postada (mas talvez a gente não veja)

Pensei muito nestas questões ao fazer uma reflexão sobre como nós, que nos consideramos progressistas, perdemos o domínio da rede (uma ferramenta tradicionalmente usada para fazer política e, porque não, revoluções) e fomos engolidos por uma nuvem de intolerância (de ambos os lados). Não é segredo que o discurso reacionário está muito mais forte do que a pauta progressista. Se antes éramos nós que estávamos na internet e capitaneávamos campanhas com hashtags, agora essas ferramentas foram devidamente apropriadas por eles.

Nos anos em que trabalhei cobrindo tecnologia, acompanhei de perto a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, o 15M, e como a tecnologia foi utilizada por esses grupos para mobilizar pessoas, provocar discussões e até derrubar governos. Aqui no Brasil, de maneira mais tímida, vimos a internet se levantar contra a Lei Azeredo, e dessa briga surgir o Marco Civil da Internet (que depois caiu no troca-troca político, mas isso é outra história). Enfim: realmente acreditávamos que a web era um palco para articulação e mudanças concretas.

E é. Mas talvez não do jeito que estávamos pensando. Fechados em nossa própria bolha, deixamos de acompanhar os outros lados.

Depois de junho de 2013 e a ascensão de uma nova consciência política – a insatisfação generalizada contra a corrupção -, os governistas, os desiludidos (que sentem que o governo petista já não os representa mais) e a oposição clássica (tanto os liberais quanto os conservadores) batem de frente, e entre eles há um abismo: parece que não há diálogo possível.

Claro que a culpa da polarização não é só do Facebook. Porém, se levarmos em conta que 70% dos brasileiros que estão no Facebook usam a rede social para se informar (estamos falando de mais de 90 milhões de pessoas!) e os mecanismos de seleção de conteúdo só exibem aquilo que o usuário possivelmente vai curtir, não é difícil concluir que a grande parte das pessoas se informa, basicamente, através dos contatos e páginas que têm um ponto de vista semelhante ao seu. Por escolha própria ou pelo algoritmo, o isolamento é o mesmo.

Silenciar o outro no Facebook é muito simples: basta esconder a publicação, deixar de seguir a pessoa ou, em casos extremos, desfazer a amizade. Porém, nem sempre fazemos isso conscientemente – estamos também sujeitos à ação do algoritmo. Nós o alimentamos com o nosso comportamento online, e também nos comportamos online de acordo com o que ele nos exibe: é uma via dupla.

Imersos neste sistema, ficamos sem saber o que o outro pensa. Nesta semana, o advogado Pedro Abramovay publicou outra história surpreendente, aqui no Brasil Post, que também prova o quanto nós desconhecemos nós mesmos.

Quando 90 milhões ficam fechados em um sistema que alimenta suas opiniões e cala as contrárias, a polarização parece inevitável. O Facebook pode tentar jogar a culpa nas pessoas, mas não pode negar o quanto o funcionamento do seu sistema contribui para a exacerbação dos ânimos – e da falta de diálogo. Vi muita gente surpresa com o tamanho das manifestações de março e abril. De onde veio a surpresa? Toda a articulação aconteceu na internet, para todo mundo ver (mas nem todo mundo teve acesso a essas informações).

Em 2012, Pariser disse à revista Época:

É uma forma muito sutil de censura. Você não é proibido de ver nada, mas sua atenção é dirigida de forma que você não note que a informação existe. Como dependemos cada vez mais dos resultados de busca ou de indicações nas redes sociais para chegar a um conteúdo na internet, o filtro invisível pode esconder páginas e pessoas definitivamente. As consequências disso podem ser muito graves.

Nós não sabemos ainda as consequências deste nosso isolamento em nossas bolhas particulares de interesse, mas levando em consideração o atual cenário de polarização e falta de diálogo, eu acho que Pariser estava certo. Precisamos sair da bolha.

Fonte: brasilpost.com.br

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