Pare, sinal vermelho!


Leandro Monteiro - NOVO, SP

 

Começo nossa conversa de hoje com duas breves histórias.

A primeira se passou na cidade natal, no interior de São Paulo. Apesar de nunca ter morado, passei por lá pelo menos um quarto da minha infância — praticamente do primeiro ao último, de todas as minhas férias escolares.

Lembro-me que, há muitos anos atrás, a cidade não tinha nenhum semáforo, e o prefeito da época resolveu trazer esta “modernidade” para a cidade. Escolheu um cruzamento importante, fez-se a licitação (suponho, ou espero) e, no dia da inauguração, pôs-se uma grande festa, com palanque, comício e banda.

Nos primeiros dias, houve grande movimento de gente para ver a novidade. Após algumas poucas semanas, o cruzamento praticamente morreu, assim como o comércio nas quadras adjacentes. Ninguém mais queria passar por ali de carro, e ter que ficar parado no sinal vermelho — era mais rápido fazer o contorno pelas ruas paralelas e gastar duas quadras a mais do que esperar ele abrir.

A segunda história aconteceu mais ou menos 15 anos depois, quando eu já estava fazendo faculdade na PUC-SP, em Perdizes. No entorno do quarteirão em que fica o campus principal da Universidade, havia vários cruzamentos em que o fluxo de carros e pedestres era enorme, porém, sem nenhum semáforo. Ainda assim, a convivência era razoavelmente tranquila: como o fluxo era considerável, uns buscavam ficar atentos para com os outros e, nos quase quatro anos em que circulei por ali, nunca presenciei acidente algum.

Quando as aulas voltaram após as férias de julho — acredito que era meu último ano de curso —, fomos surpreendidos pela instalação de vários semáforos nessas esquinas. Muitos jugaram, de início, que a iniciativa era boa. Deixariam os cruzamentos mais seguros para os pedestres. Contudo, aparte a piora do trânsito no local, o que se percebeu foi um aumento da animosidade entre pedestres e motoristas.

Brigas tornaram-se frequentes. Pedestres xingando motoristas porque paravam em cima da faixa, para fazer uma conversão (mesmo sendo impossível fazer a conversão de outra maneira) e motoristas buzinando e gesticulando para pedestres quando estes começavam a atravessar a rua e o sinal abria — o que, aliás, causou o primeiro atropelamento. Por sorte sem consequências graves.

Hoje em dia, estamos tão acostumados com a presença de semáforos em nosso cotidiano que, muitas vezes, não nos lembramos que nem sempre eles estiveram lá. Pouco nos questionamos sobre aquelas luzes que estão em tantas esquinas. Afinal, você já pensou sobre o qual a função de um semáforo?

O semáforo é, nada mais, do que uma ordem do Estado. Uma declaração que manda você adotar este ou aquele comportamento (parar ou seguir).  Em Direito, é considerado um “ato administrativo”: uma declaração unilateral da Administração Pública, com força imperativa (ou seja, de cumprimento obrigatório), que impõe um dever ao administrado (FARIA, 2007:259). Neste sentido, a ordem de um semáforo se assemelha a um regulamento, uma portaria ou um decreto, emitidos pela autoridade governamental.

Contudo, os semáforos têm algumas características bem distintas. A primeira é mais óbvia: diferentemente da grande maioria das ordens estatais, o mandamento que o semáforo dá é representado por uma luz colorida, não por palavras escritas.

A segunda é ainda mais importante: ele não é um ato administrativo levado a efeito por um agente público diretamente. Portanto, como ensina o prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, trata-se de uma manifestação por trás da qual não há nenhuma “vontade”; e, apesar de ser apenas uma sucessão automática de ordens levada a cabo por uma máquina, isso não lhe tira o valor jurídico de ato administrativo (BANDEIRA DE MELLO, 2010:373).

Imagino que todos os leitores já passaram inúmeras vezes pela situação de chegarem a um cruzamento e se depararem com um sinal vermelho. Olham para a direita, até onde o olhar enxerga…. e nada; olham para a esquerda, até uma centena de metros… e também nada. Nas calçadas, nas lojas, ninguém remotamente perto que pudesse, mesmo correndo, atravessar aquele cruzamento nas próximas dezenas de segundos. Avançar e fazer o cruzamento não prejudicaria nenhuma outra pessoa (nem há pessoa ali para ser prejudicada). E por que você permanece ali, parado? Só porque o sinal está vermelho — e o Estado te manda parar no sinal vermelho.

Honestamente, me pego muitas vezes nessa situação indagando a mim mesmo: por que diabos estou obedecendo a uma lâmpada?! Por que estou aceitando que milhares de anos de evolução do cérebro e do intelecto humano, toda a capacidade que nos foi dada de raciocinar em termos de profundidade, de fazer instintivamente contas de tempo e distância (habilidades sem as quais eu sequer conseguiria dirigir um carro), sejam absurdamente subjugados por uma peça de metal que não faz a menor ideia de tudo o que está se passando em volta?

Será que, naquela situação, não sou eu o mais capaz de entender o que é mais ou menos benéfico ou prejudicial do que o Estado, por meio daquela ordem vermelha que está me dando?

Vejam, por favor, que não estou de modo algum advogando contra o semáforo em si, contra sua existência em absoluto ou contra sua utilidade em abstrato. Eu seria inconsequente em sugerir que fossem desativados definitivamente, por exemplo, os semáforos do cruzamento da Avenida Brasil com a Avenida Rebouças, em São Paulo, onde o fluxo é intenso e o sinal funciona muito menos como um interruptor de fluxos, e muito mais como um “alternador de preferências” — aliás, talvez esse fosse um sistema mais adequado a muitos dos nossos cruzamentos.

Mas devemos questionar, sim, a proliferação indiscriminada de semáforos em nossas cidades e também o modo de seu funcionamento. E questionar tanto por motivos econômicos — pela perda de tempo útil, pelo trânsito que muitas vezes causam, pelo preço e pela manutenção que custam, pelo impacto que têm no entorno de onde são instalados — quanto (e mormente) pelo seu significado político, cultural e filosófico: dar poder ao Estado.

Ainda que seja o de controlar o tráfego em uma esquina, é abrir mão de liberdade individual; é esperar menos responsabilidade dos cidadãos. É neste caldo de cultura, que se gera uma sociedade acostumada a terceirizar a responsabilidade, onde imperam a impunidade, a corrupção, a violência.

Nós, liberais, por tendência ou influência, acabamos focando muito nossas análises nos grandes temas econômicos e políticos, discutindo os malefícios do planejamento central, do excesso de regulação, a intervenção do Estado na economia. Às vezes devemos tirar nossos binóculos e ver que há pequenas coisas próximas, no nosso quotidiano, na nossa esquina, tão sintomáticas da cultura do estatismo em que vivemos quanto o burocrata em Brasília que quer decidir o preço do pão ou a cor do lápis da escola. Estas pequenas coisas têm um impacto cultural enorme, e precisam, portanto, serem discutidas e combatidas.

O semáforo representa a quintessência da arbitrariedade estatal. Em nome da nossa liberdade, devemos questioná-lo.

Leandro Monteiro é advogado e bacharel em Relações Internacionais, ambos pela PUC-SP e mestre pelo Programa Santiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Atua primordialmente na área do agronegócio. É liberal.

Referências:

FARIA, Edmur Ferreira. Curso de Direito Administrativo Positivo. 6ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2007.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo, Malheiros, 2010.

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