
Pablo Iglesias, Secretário Geral do partido espanhol Podemos (foto: AFP, Dani Pozo)
Não se trata da primeira vez em que crises econômicas levam a mudanças profundas no jogo partidário, mas na Espanha este fenômeno alcançou a dimensão de uma pequena revolução. Desde os anos 80, quando as lembranças da ditadura militar de Francisco Franco ainda estavam frescas, dois partidos se consolidaram como dominantes na política espanhola: o Partido Popular (PP) e o Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE).
Durante anos, Espanha parecia rumar a um cenário de bipartidarismo semelhante ao de outras democracias ocidentais, como o Reino Unido. O PP aglutinava as diversas alas da direita, o PSOE fazia o mesmo à esquerda e juntos eles dominaram quase todo o parlamento espanhol durante anos. Nas eleições de 2015, com o surgimento de novos partidos e a impopularidade dos velhos políticos, muita coisa deve mudar. As últimas pesquisas indicam que o PP deve murchar pela metade, saindo de 186 deputados para pouco menos de 100, enquanto o PSOE perderá no mínimo 20 deputados, passando de 110 para uma cifra próxima a 90 congressistas.
Nada disso foi inesperado para quem acompanhava a política espanhola nos últimos anos. O partido socialista Podemos já vinha ganhando força nas redes sociais, recebendo o apoio de jovens desiludidos com o sistema e da ditadura venezuelana, que financiou o grupo em seus primórdios. Com uma imagem cool, diferente dos políticos comuns, o cientista político Pablo Iglesias atraiu os holofotes para si e passou os últimos anos estabelecendo acordos para fazer crescer o respeito da opinião pública ao seu partido.
Dentre outras iniciativas, o Podemos atraiu o famoso economista francês Thomas Piketty para elaborar um plano de diminuição da desigualdade na Espanha. Tudo parecia conspirar para que o cargo de primeiro ministro ficasse mais próximo da barba rala e do rabo de cavalo de Pablo Iglesias, novo ícone pop da esquerda ocidental.
Isso até as eleições chegarem e a surpresa geral se estabelecer. Adotando o laranja como cor oficial, o Ciudadanos (Cidadãos) também surgia como nova força na política espanhola, embora não recebesse tanta atenção da imprensa pelo mundo. Numa comparação nacional, o Ciudadanos seria algo como uma junção entre o Partido Novo e a Rede de Marina Silva, ou uma versão old-school do PSDB, que combina a defesa de um estado eficiente nas políticas sociais com uma economia de mercado funcional, em que o estado mais ajuda do que atrapalha.
Enquanto a esquerda, representada no Podemos e no PSOE, defende que o Estado espanhol gaste mais e mais para se aproximar do modelo vigente em países escandinavos como Dinamarca e Suécia, o Ciudadanos surge como a única força política a citar a abertura destes países ao mercado e ressaltar a importância de um ambiente de negócios pouco burocrático no sucesso escandinavo. Também é o único partido que propõe uma ‘dívida pública solidária com as gerações futuras’, sem cair no fácil discurso político de quem pede mais endividamento em nome do social, esquecendo que a dívida de hoje será paga pelas gerações do amanhã. E enquanto o Podemos se associava a Piketty, o Ciudadanos buscou seu mentor econômico na Universidade de Chicago, onde Luis Garicano foi professor durante anos.
Depois de alcançar, em coalizões, as prefeituras de Madri e Barcelona, o Podemos parecia surgir como grande força para as eleições espanholas deste ano, mas seu capital político evaporou antes mesmo de seus militantes chegarem ao poder. O partido de Pablo Iglesias cresceu vertiginosamente nas pesquisas antes das eleições, mas a queda vem sendo igualmente vertiginosa.
Depois de liderar (empatado com o PP) no início do ano, o Podemos caiu até se tornar a quarta força das eleições espanholas e ver o Ciudadanos tomando um lugar que parecia seu, de empate na primeira colocação. Os militantes, é claro, se irritam com a derrota para um partido que eles consideram neoliberal, ainda que os eleitores do Ciudadanos sejam os mais centristas do espectro político espanhol. Há, porém, alguma justiça na afirmativa: com dois candidatos diretamente ligados à esquerda socialista e outro ligado a um direitismo interventor e conservador, o Ciudadanos aparece como a mais liberal das opções e foi o único partido capaz de entortar as tradições da política local, a ponto de não ser compreendido pelo discurso de seus adversários.
Apesar do gráfico acima ainda apontarem o Ciudadanos como terceira força nas eleições deste ano, pesquisas mais recentes indicam que a virada é mais consistente e o partido chega à liderança em alguns levantamentos. Uma pesquisa da semana passada aponta um empate triplo entre PP, PSOE e Ciudadanos, faltando apenas 30 dias para as eleições. Outros indicadores mostram que o partido veio para ficar: enquanto Pablo Iglesias causa tanta rejeição e desesperança nos eleitores quanto o atual e impopular primeiro ministro Mariano Rajoy (PP), o candidato do Ciudadanos – Albert Rivera – conseguiu encarnar em si justamente o oposto, sendo o mais aceito e mais capaz de causar esperança no eleitorado espanhol.
O novo fenômeno espanhol talvez não seja inteiramente compreendido através das velhas categorias políticas, mas seu sucesso contrasta com um programa que muitos classificariam como suicida num país fervorosamente católico e patrimonialista, como a Espanha – e o Brasil. O partido faz uma defesa aberta de pautas liberais na economia – como controle dos gastos, abertura comercial, desburocratização e mudanças nas regras do serviço público – e progressistas no campo social – como apoio ao casamento gay, legalização do aborto e das drogas, ainda que estes dois últimos sejam defendidos apenas por alas do partido.
Com um programa inspirada no que chamam de ‘socioliberalismo’, o Ciudadanos surge como uma alternativa real para quebrar as tradições clientelistas e conservadoras que são comuns aos países latinos. O Brasil também passa por uma crise econômica e, hoje, parece que as figuras políticas tradicionais provavelmente serão punidas na urna. Por aqui, temos até uma versão nacional do Podemos, o PSOL, que não esconde sua aliança com o partido espanhol, nem sua intenção de tomar para si o eleitorado petista.
Só o futuro dirá se o sucesso do Ciudadanos integra uma modernização da política latina, ou se tudo não passou de fogo de palha. Até o momento, porém, o recado é claro: o discurso progressista e pró-mercado, sempre rechaçado em países como os nossos, parece ganhar força no século XXI. Resta saber quanto tempo essa tendência durará – e se ela será capaz de atravessar o Atlântico até chegar ao Brasil, em 2018.
Fonte: mercadopopular.org